O relato de um brasileiro em Paris
Era uma noite de sexta-feira, a Bastille e a République, duas regiões muito populosas de Paris e conhecidas por seus bares, estavam lotadas de gente como de costume, mas não foi uma sexta-feira comum, como todos sabem. Tudo fugiu da normalidade de uma cidade que é muito movimentada, mas que inspira uma boa sensação de segurança.
Depois que soubemos dos ataques, a primeira coisa a fazer era avisar os familiares que estávamos bem. Imagino a música aterrorizadora dos “plantões da TV” e em seguida descobrir que alguém que você ama está numa zona de guerra. Sim, zona de guerra, desde o início ficou evidente que não se tratava de um crime aleatório, nem de um caso isolado de uma mente perturbada por qualquer motivo: era um ataque, coordenado e com o objetivo de gerar pânico.
A grande estratégia do terrorismo não é matar a todos ou declarar guerra abertamente, mas gerar a sensação de que ninguém está seguro, que o ataque pode vir de qualquer lugar. E era essa a sensação mesmo, apesar de eu não estar em casa no momento do ocorrido – eu moro a 5 minutos de onde ocorreram os ataques. A minha sensação e das pessoas que estavam comigo era que aquilo poderia se espalhar pela cidade toda.
Nas primeiras horas ninguém estava entendendo nada: por que a Place de la Republique? Por que que a Place de la Bastille? Por que a casa de shows Bataclan? O que esses lugares representavam e para quem? A grande suspeita já recaia sobre o grupo autodenominado “Estado Islâmico”, mas não existia qualquer evidência, somente suspeitas.
Continuamos acompanhando as notícias e não saímos da casa onde estávamos, atendendo a recomendação dos nossos familiares e o toque de recolher da polícia local. Vale o destaque para a atuação da imprensa francesa que optou por não gerar mais pânico e não veiculou imagens dos espaços atingidos ou de sangue, preferindo trazer analistas e discutir as diversas explicações possíveis para o ocorrido.
Nenhuma pessoa que conheço dormiu bem naquela noite. Eu mesmo, só depois das quatro da manhã. Não era medo, era um estado de choque, todos perplexos e alertas. Nenhum de nós viveu em zona de conflito, seja uma guerra declarada ou as guerras veladas nos extremos (esquecidos) das grandes cidades do Brasil. Aquela sensação era nova para todos. Não, não é a mesma coisa que sentir receio de ser assaltado ou perseguido, nem medo de ser morto; é o estado de alerta, um estado de terror mesmo, que interrompe qualquer plano e limita qualquer intenção de agir.
Passado o primeiro susto, depois de verificar que estávamos fora de perigo e depois de ter respondido as mensagens aflitas dos familiares e amigos, nos restava tentar entender o que se passava ali, nos locais dos ataques e as repercussões no Brasil. O perfil de todos na casa era bem semelhante: somos estudantes, viemos do Brasil para fazer uma parte do doutorado e nos conhecemos na igreja local. Cada na sua área específica, mas em comum a grande área das Ciências Sociais. Dito isso, não demoraria muito para tentarmos refletir sobre o que víamos nas repercussões dos atentados: muita gente preocupada, muita gente questionando a preocupação, muita gente chamando atenção para a tragédia de Paris, muita gente exigindo que a prioridade deveria ser as tragédias locais, no Brasil. Como sempre diz Leandro Karnal em suas palestras: “na era da internet, há muita gente querendo falar e ninguém disposto a ouvir”. E era bem isso, o tempo de reflexão, de observação, de apuração não faz parte deste século. Todos precisam gritar, chamar atenção, postar logo uma opinião, dizer ao mundo qualquer coisa – não porque é importante, mas porque marca presença. Tragédia não se compara, se sente, se solidariza e age na medida do possível. Claro que existe filtro midiático em nossa vida e vai limitar nosso universo conhecido das notícias pelo mundo e que Paris chama atenção do mundo inteiro por ser popular como é, mas o momento da tragédia não é o momento para essa discussão. O momento oportuno virá nos debates sobre democratização das mídias, regulação da porcentagem de conteúdos regionais etc. É preciso ressaltar, porém, que a maioria das mensagens eram carinhosas e de apoio aos cidadãos parisienses.
Na manhã seguinte a cidade estava vazia. O metrô não funcionava totalmente, diversas estações fechadas e os ônibus fora de circulação. A maioria de nós ainda não sabia o que fazer – nós na casa e todos que estavam em Paris. O presidente François Hollande já havia decretado “estado de emergência” e as fronteiras estavam fechadas, mas não recomendavam aglomerações e ordenaram o fechamento de todos os espaços públicos.
Esperamos.
No período da tarde o metrô voltou a operar normalmente. Meu trajeto para casa foi observando a reação das pessoas. Aparentemente existia uma tentativa de não se abalar com o ocorrido, estavam tentando demonstrar que não seriam intimidados. Confesso que no primeiro momento confundi essa atitude com indiferença, mas depois ficou mais evidente que se tratava de uma tentativa de não se render ao medo. No caminho até chegar em casa vi os bares abertos, supermercados funcionando e as pessoas andando pelas ruas. Não fui até uma das praças onde ocorreram os ataques, mas soube por amigos que as pessoas iam até lá para prestar homenagem e manifestar que não se renderiam ao medo.
Como disse antes, o terror ameaça qualquer tentativa de normalidade e vai aguçar o alerta para os próximos dias e semanas. Acredito que as pessoas vão tentar voltar logo para suas rotinas normais e cidade estará repleta de gente novamente, em pouco tempo. Mesmo assim, com a aparente tranquilidade sendo retomada, não deixem de orar por nós aqui. Todos precisaremos de discernimento para agir e construir nosso olhar sobre a história que se passou.
• Leandro de Carvalho é doutorando em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília e pelo Laboratório de Estudos sobre Economia da Informação e da Cultura na Université Sobornne Cité – Paris 13. É membro da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo (SP) e integrante da equipe executiva do Movimento Vocare.
Fonte: www.ultimato.com.br
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